Dora Kalff, construtora de pontes

A areia tornou-se cada vez mais importante ao longo dos anos para mim, porque observei que ela representa um elemento que não usamos mais em nossas vidas hoje em dia: o elemento terra.

Dora Kalff, em “Sandplay: a method of psychotherapy”

Dora Kalff
Sumário

Sua história

O século XX mal começara quando, na Suíça, perto da capital Zurique, nascia Dora Maria Kalff, criadora do método Sandplay, no seio de uma família protestante. Era 12 de dezembro de 1904, inverno no vilarejo de Richterswil, em Lake Zurique, e os tradicionais Lilly Gattiker-Sautter e August Gattiker celebravam a chegada da terceira filha, do total de quatro filhos que teriam.

O patriarca Gattiker era considerado um homem severo, justo, generoso e devotado à família, e Dora tinha com ele vínculo estreito. Era comerciante de tecidos e político de relevo em seu país. Resistiu fortemente ao nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e, por isso, entrou para a lista negra dos nazistas. Quanto à mãe, Lilly, Dora a considerava carinhosa e forte. Ela estimulou, nos filhos, o interesse pelas artes.

Quando menina e ainda na juventude, Dora tinha saúde fragilizada por problemas respiratórios, como relatam Friedman e Mitchells no capítulo dedicado a Dora Kalff do livro “Sandplay: past, present, and future”. Não podendo participar de muitas atividades físicas, nutriu sua introversão. A fraca saúde também a levou para uma escola interna para meninas nos Alpes, a Fetan, próxima de St. Moritz. Formou-se no que se chamava “Ginásio Humanista” em 1923, tida como aluna destacada.

Seus professores a estimularam a estudar filosofia oriental e línguas estrangeiras. Assim, estudou latim, grego e sânscrito e alimentou seu interesse profundo pelo Oriente com o estudo do mandarim e da filosofia chinesa, em especial do Taoísmo. Mais tarde, tais pesquisas influenciariam o desenvolvimento de sua terapia, como ela própria indica em seu livro “Sandplay: a psychotherapeutic approach to the psyche”. O pensamento de Zhou Dunyi, o “I Ching” e os conceitos de yin e yang, dos cinco elementos e dos oito hexagramas estão presentes em sua obra.

Após a graduação, então, ela continuou a se dedicar às esferas espiritual, educacional e artística. Frequentou o colégio Westfield, em Londres, onde se especializou em filosofia. Em seguida, estudou música com Robert Casadesus, na França, e tornou-se concertista. Na Itália, aprendeu o ofício de encadernação e apaixonou-se por um italiano. O romance foi proibido por seu pai, por diferenças religiosas. Magoada, foi obrigada a voltar à Suíça. Decidiu, então, fazer como sua irmã e mudar-se para um convento.

A irmã providenciava saídas do convento e, numa dessas, Dora conheceu Leopold Ernst August Kalff, pertencente à família proprietária do banco holandês, Jon Kalff & Co. Eles se casaram em 1934, quando ela contava 29 anos, e mudaram-se para a Holanda, compartilhando muitos interesses, inclusive pelo Oriente, onde Leopold  havia vivido.

Em 1939, a Sra. Kalff voltou para a Suíça para o nascimento de seu primeiro filho, Peter. Retornou à Holanda e, seis meses depois, diante da ameaça de invasão nazista e do estado de saúde do bebê, que também sofria de problemas respiratórios, voltou à Suíça, deixando o marido na Holanda. Ela conseguiu lugar no último trem que partia da Holanda antes da invasão. No entanto, havia perdido sua cidadania suíça ao casar-se com um holandês, o que lhe trouxe muitos problemas financeiros: não recebia tickets de comida nem outros benefícios concedidos aos cidadãos durante os anos de guerra. Ao mesmo tempo, a riqueza do marido dissipava-se, pois os nazistas confiscaram o banco. A ajuda que o pai oferecia era por ela recusada, pois desejava ser independente e responsável por tudo.

O mergulho na psicologia junguiana

Quando a criança começa a brincar na caixa de areia, ela se aproxima de sua totalidade. As primeiras cenas costumam mostrar situações da realidade externa, mas logo os símbolos que apontam para problemas interiores da criança emergem. Conforme ela brinca, penetra mais profundamente em si mesma e torna uma situação interior visível. A polaridade entre seu mundo interior e exterior é, então, revelada e unida na cena.

Fig.1 Dora Kalff; Fig.2 D.K. atendendo criança; Fig.3 D.K. atendendo adulto

Em 1944, Dora Kalff (Kalff) e o filho Peter mudaram-se para Parpan, cujo clima poderia favorecer a saúde do menino. Entre os amigos que Peter recebia em casa, estavam os netos de Carl G. Jung, filhos de Gret Jung-Baumann. Certo dia, ela telefonou para Dora para comentar que, quando suas crianças voltavam das brincadeiras na casa de Peter, sempre pareciam relaxadas e felizes. O encontro com a filha de Jung resultou numa duradoura amizade e num novo rumo para Kalff.

Após a morte de seu pai, que lhe deixou modesta herança, a amiga Gret sugeriu que ela investisse em estudar psicologia, já que era tão talentosa com crianças. Jung, ao conhecer Kalff por intermédio de sua filha, concordou que suas habilidades indicavam que a escolha pela psicologia era acertada.

Em 1944, Dora Kalff (Kalff) e o filho Peter mudaram-se para Parpan, cujo clima poderia favorecer a saúde do menino. Entre os amigos que Peter recebia em casa, estavam os netos de Carl G. Jung, filhos de Gret Jung-Baumann. Certo dia, ela telefonou para Dora para comentar que, quando suas crianças voltavam das brincadeiras na casa de Peter, sempre pareciam relaxadas e felizes. O encontro com a filha de Jung resultou numa duradoura amizade e num novo rumo para Kalff.

O casamento dela não sobreviveu à distância imposta pela guerra e o divórcio veio em 1949. Três anos antes, havia nascido o segundo filho do casal, Martin, que viria a ser um dos fundadores,     em 1985, da International Society for Sandplay Therapy – ISST.

Também em 1949, Kalff iniciou sua formação de seis anos no Instituto C. G. Jung de Zurique. Em 1950, decidida a morar mais perto do Instituto, mudou-se para uma casa antiga nas proximidades de Zollikon.  Ao conhecer o lugar, logo intuiu que a casa, de 1485, seria sua residência e local de trabalho.

Ainda em formação como analista, e estando em análise com Emma Jung, Kalff ficou muito impressionada com a palestra de Margeret Lowenfeld de 1954, quando Dora tomou contato com a possibilidade de as crianças se comunicarem por meio da linguagem do brincar. A médica londrina havia desenvolvido a World Technique a partir da observação de crianças que espontaneamente juntaram areia e água em sua clínica e, 25 anos depois disso, Kalff compartilhava com Jung sua descoberta (com a qual ele já havia tomado contato nos anos 1930).

Encorajada por ele, entrou em contato com Lowenfeld e as duas iniciaram uma troca. No ano de 1956, tendo completado todos os estudos exigidos para obter o certificado de analista junguiana (e não obtido o diploma por não ter concluído curso superior), morou em Londres, a fim de trabalhar com a médica inglesa. Quando na Inglaterra, teve como mentor Michael Fordham, o primeiro terapeuta junguiano infantil daquele país, e foi aluna de Donald D. Winnicott, renomado psicanalista e pediatra.

Kalff não permitiu que a falta de um certificado formal a impedisse de trabalhar com crianças em uma perspectiva junguiana. No retorno à Suíça, mergulhou na integração da psicologia analítica, a qual lhe instrumentava para o trabalho com os símbolos, com o repertório que havia adquirido na Inglaterra. Era a única analista junguiana a lidar com crianças em seu país. O contato com Lowenfeld acabou tornando-se raro e foi retomado no final dos anos 1950, quando elas trocaram cartas e Kalff foi autorizada a usar o nome “Sandplay” para a terapia desenvolvida a partir da World Technique.

Em Jung, Kalff encontrou um ouvinte amigo e apoiador de seu trabalho. Jung havia pessoalmente descoberto os poderes da cura pelo brincar, pois se dedicava ao jogo de construir com terra e pedras nas praias do Lago Zurique. O fluxo de fantasia do inconsciente, liberado, ajudava-o fortemente em sua autoanálise (veja a biografia de Jung).

Kalff reconheceu que o Sandplay oferecia uma modalidade terapêutica natural para a criança, permitindo a expressão dos mundos arquetípicos e intrapessoais e ligando a criança à realidade exterior.

Combinadas, essas dimensões contribuíam para a emergência de imagens de reconciliação e totalidade e restabeleciam a conexão entre o ego e o Self, o que promovia o equilíbrio. Após ter-se dedicado à terapia Sandplay por muitos anos exclusivamente com crianças, Kalff passou a aplicá-la a adultos e percebeu resultados igualmente positivos. Mesmo sem diploma de faculdade, a terapeuta foi reconhecida como analista em função de suas significativas contribuições à psicologia analítica.

Conexões entre ocidente e oriente

Fig.1 Lama Tibetano Geshe Chodak ; Fig.2 Mestre Zen Budista Daisetz Suzuki; Fig.3 Grupo fundador ISST; Fig.4 Martin Kalff

As ligações entre Oriente e Ocidente se revelaram de muitas maneiras por toda a vida de Kalff, que meditava diariamente e praticava a respiração Chung Long, a qual lhe dava energia. Seu interesse pela filosofia oriental foi reforçado por dois sonhos que teve, os quais contribuíram para o desenvolvimento de sua terapia.

O primeiro, analisado por Emma Jung, trazia o Tibet como cenário. No sonho, Kalff é abordada por dois monges que entregam a ela um instrumento retangular dourado. Conforme ela balançasse esse instrumento, uma abertura surgiria no chão e, por ela, se poderia ver o outro lado do mundo, o Oriente, onde o sol brilhava. Emma Jung estimulou, assim, sua analisanda, a construir uma ponte entre os dois mundos.

O segundo sonho, Kalff teve no dia da morte de Jung, 6 de junho de 1961. Nele, o próprio Jung a convidara para o jantar e, sobre a mesa, havia um grande monte de arroz, para o qual ele apontou e disse a Kalff que continuasse a explorar o Oriente. O arroz aludia à areia e a mesa, à caixa de areia.

Em 1959, Kalff esteve com um lama tibetano, Geshe Chodak, refugiado. Ela o abrigou em sua própria casa por oito anos, uma experiência que a colocou em contato com outros monges, incluindo um tutor pessoal do Dalai Lama, Trijang Rinpoche, que visitou a Suíça em 1966 e se hospedou na casa dela. Também com o Dalai Lama ela esteve em diversas ocasiões. Por sua influência, uma casa vizinha à sua tornou-se um centro tibetano de ensino religioso, nos anos 1970.

Outra conexão entre Oriente e Ocidente surgiu quando Kalff conheceu, em Eranos, Daisetz Suzuki, Mestre zen budista, a quem voltou a encontrar no Japão, onde ensinou o Sandplay aos terapeutas que já estavam influenciados pela perspectiva simbólica de Jung, bem como pela perspectiva humanista de Carl Rogers (não julgamento e centramento na pessoa). Além disso, o método não verbal do Sandplay se encaixava bem com os costumes daquela nação.

Por ser poliglota, Kalff realizava palestras em muitos países, levando imagens e histórias de experiências de Sandplay para aqueles que buscavam encontrar uma forma de integrar aspectos não verbais à prática clínica e facilitar expressão mais equilibrada da psique. Como resultado dessas jornadas, muitos psicoterapeutas e analista junguianos integraram o Sandplay a seus trabalhos, em especial na Europa (particularmente na Inglaterra, Alemanha, Itália e Suíça), nos Estados Unidos e no Canadá.

A casa onde Kalff morava, em Zollikon, passou a ser, nos anos 1980, local de encontros regulares entre psicoterapeutas de diversas partes do mundo, que estavam interessados em se aprofundar no método Sandplay – Jogo de Areia – e fomentar sua aplicação. Com o tempo, surgiu a necessidade de uma organização mais formal que levasse adiante esses objetivos e, por esse motivo, em 13 de agosto de 1985, foi fundada a International Society for Sandplay Therapy (ISST), à qual o Instituto Brasileiro de Terapia de Sandplay é filiado.

A maioria dos membros fundadores era formada por analistas junguianos: da Suíça, Kaspar Kiepenheuer e Martin Kalff; da Itália, Paola Carducci e Andreina Navone; da Inglaterra, Joel Ryce-Menuhin; dos Estados Unidos, Kay Bradway, Estelle Weinrib, Chonita Larsen e Cecil Burney; do Japão, Hayao Kawai, Yasuhiro Yamanaka e Kazumiko Higuchi e, da Alemanha, Sigrid Löwen Seifert, que se juntou ao grupo fundador no ano seguinte.

Kalff sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) no final dos anos 1980, mas continuou mentalmente ativa e em contato com o inconsciente. Seu filho, Martin, relatou que, cerca de um mês antes de falecer, ela falava, ainda que com dificuldades, da viagem que faria para outra vida e do túnel pelo qual teria de passar. Quando falava sobre essa viagem, ela demonstrava alegria.

Dora Kalff morreu em 15 de janeiro de 1990, em sua casa em Zollikon. Em honra a ela, serviços funerais foram celebrados em muitas comunidades do mundo.

Fontes utilizadas nesta pesquisa:

FRIEDMAN, Harriet S. e MITCHELL, Rie R. “Sandplay: past, present, and future”. Oxford: Routledge, 2002.

FRIEDMAN, Harriet S. e MITCHELL, Rie R. “Supervision of Sandplay Therapy”. E-book. Oxford: Routledge, 2007.

KALFF, Dora. “Sandplay: a psychotherapeutic approach to the psyche”. Cloverdale: Temenos Press, 2004.

KALFF, Martin. “On the history of ISST”. Disponível online em http://www.isst-society.com/homeng.php?site=history. Acesso em 13 jun. 2014.

SANDPLAY: A METHOD OF PSYCHOTHERAPY. FILME. 50 MIN. DIREÇÃO E PRODUÇÃO: PETER AMMANN, 1972.

SCHAEFER, CHARLES E. “PLAY THERAPY WITH ADULTS”. E-BOOK. NOVA YORK: JOHN WILEY & SONS, 2003.