Carl G. Jung – As viagens

Sumário

Carl Jung: um desbravador de caminhos interiores

"O mar é como a música; traz em si e faz aflorar todos os sonhos da alma. A beleza e a magnificência do mar provêm do fato de impelir-nos a descer nas profundezas fecundas de nossa alma, onde nos defrontamos conosco, recriando-nos, animando “o triste deserto do mar”.

Carl Jung, em carta a Emma Jung, redigida no navio que partira de Nova York, em 1909.

Pode-se afirmar que as viagens realizadas por Carl G. Jung significaram, para ele, além de ocasiões de pesquisa e projeção internacional, oportunidades de viajar para dentro de si mesmo. Atento à maneira como pessoas de diferentes culturas se relacionavam e mantinham (ou não) ligação com as divindades e a natureza, Jung também encontrou, nessas pessoas tão diferentes, pontos em comum com aquele que ele próprio representava: o homem branco europeu. Algo parecia unir Jung a um índio norte-americano ou a um africano que vivia em uma tribo. Ao mesmo tempo, ele não poderia chegar tão perto desse “outro” tão distinto. Seus sonhos o alertaram para o risco de se afastar de sua identidade. A intuição que Jung teve sobre o inconsciente coletivo foi tomando corpo nessas viagens, apoiada, é claro, pela investigação clínica e pelo caminho de erudição que o psiquiatra seguira, que abrangia, entre outros campos do saber, o estudo das religiões, dos símbolos milenares e da alquimia.

O começo do século 20 para o jovem psiquiatra

1900 – Viagem para Alemanha

Cidades visitadas: Munique e Stuttgart

A primeira das viagens mais conhecidas de Jung ocorreu em 1900. Ele foi para a Alemanha, em comemoração à sua formatura e marcando o início de uma nova fase de vida: ele deixaria a mãe e a irmã na Basileia e rumaria para Zurique, pois começaria a trabalhar na clínica psiquiátrica Burghölzli, na qual se destacaria por suas pesquisas da esquizofrenia, que incluíram a criação do método de associação livre, que apoiou a teoria de Sigmund Freud sobre o inconsciente.

1902 – Viagem para Fraça e Inglaterra

Cidades Visitadas: Paris, Londres e Oxford

Antes de casar-se, já noivo de Emma, Jung teve um ano sabático. Rumou para Paris sem muito dinheiro disponível. Trabalhou com Pierre Janet, a cujas palestras também comparecia. Observava pacientes nos hospitais, a miséria que assolava a cidade e as belas artes simultaneamente. Ia ao museu do Louvre frequentemente, onde conversava com os copistas, e às galerias em que tomou contato com a cultura egípcia, pela qual se apaixonou.

Na Inglaterra, Jung sentiu emoção especial ao compartilhar do clima e dos rituais dos acadêmicos de Oxford, que se reuniam – somente os homens – para terem conversas intelectuais.

1907 – Viagem para Áustria

Cidade Visitada: Viena

Data de 3 de março de 1907 o encontro de Jung com o fundador da psicanálise em Viena, para onde Jung foi com a esposa, Emma, e Ludwig Binswanger, psicólogo pioneiro na psicologia existencial. De lá, o casal Jung rumou para a Hungria e a Itália.

É bem conhecido o fato de que Jung e Freud conversaram durante treze horas seguidas por ocasião de seu primeiro encontro. Jung ficou impressionado com Freud: “Em sua atitude, nada havia de trivial”, escreveu muitos anos depois. “Eu o achei extraordinariamente inteligente, penetrante, notável sob todos os pontos de vista.” Freud interpretou o sonho dos colegas viajantes e eles compareceram à “reunião de quarta-feira” dos psicanalistas vienenses.

Com o tempo, contudo, as diferenças entre os dois começaram a ficar claras para Jung, que afirmou: “Foi principalmente sua atitude em relação ao espírito que me pareceu problemática”. Além disso, o psiquiatra suíço não concordava totalmente com a teoria sexual de Freud.

1909 – Viagem para Áustria e Estados Unidos

Cidades Visitadas: Viena e Worcester

Em 1909, quando esteve em Viena, Jung deparou com um Freud decidido a demolir os argumentos de Jung sobre os fenômenos ocultos, mas o suíço deixou clara sua oposição. Após viver uma experiência de sincronicidade e, como descreveu, um “fenômeno catalítico de exteriorização”, Jung revelou: “Tive o sentimento de que lhe fizera uma afronta”.

De acordo com o relato, o psiquiatra, enquanto debatia com Freud, sentiu seu abdome queimar, ao mesmo tempo em que ambos ouviram um estalido da estante, o que os assustou. Como Freud estivesse descrente da visão de Jung sobre o acontecido, este anunciou que o ruído se repetiria. E assim foi.

No mesmo ano, em agosto, ambos foram, juntamente com o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, para as conferências da Clark University, em Massachusetts, nos Estados Unidos, na qual Jung recebeu o título de doutor “honoris causa”.

Durante essa viagem de sete semanas, segundo Jung recordou em Memórias, Sonhos, Reflexões, Freud chegou a desmaiar diante do interesse de Jung pelos “cadáveres dos pântanos” alemães. O mestre também não conseguia penetrar os sonhos de Jung, que possuíam conteúdo coletivo e muitos símbolos. Ao mesmo tempo, o psicanalista austríaco não pôde aceitar a interpretação de Jung sobre um de seus sonhos. O fim da relação entre ambos tornou-se iminente para Jung, ainda que ele apreciasse as sessões de análise dos sonhos com Freud e projetasse nele a imagem do pai.

Jung relatou que sonhara estar em uma casa de dois andares desconhecida. No segundo andar, na sala de jantar com móveis rococó e valiosas pinturas, ele se via surpreso e satisfeito pelo fato de a casa ser dele, mas lembrou-se de que não sabia como era o piso de baixo e, então, desceu. “Ali tudo era mais antigo. Esta parte da casa datava do século XV ou XVI. A instalação era medieval e o ladrilho, vermelho. Tudo estava mergulhado na penumbra”, contou Jung. Desejando conhecer toda a casa, abriu uma porta pesada e viu uma escada de pedra que conduzia à adega. Desceu e atingiu uma sala muito antiga com teto em abóbada. Examinando as paredes, descobriu diversas camadas de tijolos e concluiu que datavam da época romana. Viu uma argola no piso, puxou-a e descobriu outra escada. Descendo, chegou a uma gruta em cujo solo havia ossadas, pedaços de vasos, vestígios de uma civilização primitiva e dois crânios humanos muito velhos.

A sala, para Jung, representava a consciência. Os andares abaixo, o inconsciente, bem como níveis de consciência e épocas ultrapassados. “Por causa desse sonho, pensei, pela primeira vez, na existência de um a priori coletivo da psique pessoal”. Mais tarde, Jung reconheceu que as imagens do sonho remetiam a formas do instinto, ou aos arquétipos.

Quanto às diferenças em relação à maneira de Freud de interpretar as imagens, Jung nunca concordou com a ideia de que o sonho dissimulasse um significado já existente, pois entendia que os sonhos “dizem o que podem dizer”, num processo natural, desprovido de arbitrariedade.

Os anos 1910: rompimento com Freud e reconhecimento

1910 – Viagem para os Estados Unidos, Suíça e Norte da Itália

Cidades Visitadas: Chicago, Lago Constança, Walenstadt, Pávia, Arona, Tessin, Faido

 

1911 – Viagem para o Sul da França

No início da década seguinte, em março de 1910, Jung retornou aos Estados Unidos, oportunidade em que esteve, em Chicago, com Joseph Medill McCormick, homem de negócios e político que foi um de seus pacientes norte-americanos. No mesmo ano, Jung ainda esteve no lago Constança (região onde nascera) e em Walenstadt, na Suíça, e também fez um passeio de bicicleta pelo Norte da Itália. Em 1911, viajou pelo sul da França com a esposa.

1912 / 1913 – Viagem para Suíça, Itália e Estados Unidos

Cidades Visitadas: São Moritz, Engadina, Lugano, Ravena, Florença, Pisa, Gênova e Nova York

Em 1912, após ter estado em São Moritz e Engadina, na Suíça, passeou novamente de bicicleta pela Itália, para localidades diferentes de onde estivera antes. Em setembro desse ano, viajou a Nova York, nos Estados Unidos. Realizou conferências e seminários em diferentes instituições e deu entrevista ao The New York Times. Retornou àquela cidade em março de 1913, ano em que rompeu com Freud e passou a usar a expressão Psicologia Analítica para designar seu campo de atuação e pesquisas. Nessas temporadas nos Estados Unidos, Jung visitava pacientes e, cada vez mais, via seu trabalho ser reconhecido na academia e fora dela.

1914 – Viagem para os Estados Unidos, Suíça e Norte da Itália

Cidades Visitadas: Chicago, Lago Constança, Walenstadt, Pávia, Arona, Tessin, Faido

Jung retornou à Itália em março de 1914. Visitou Ravena, localizada na região da Emília-Romana, e ficou fascinado com o monumento funerário de Galla Placidia. Em agosto, Jung voltou àquele país de bicicleta. Nunca conseguiu ir a Roma, embora sempre o desejasse, por ser o centro de velhas civilizações. Em 1949, quando tentou retomar esse plano, teve uma síncope ao comprar a passagem.

A década de 1920: o impacto dos povos primitivos

"Hoje, Hórus levantou-se atrás de uma distante montanha pálida, sobre uma planície infinitamente verde e trigueira, enquanto um vento poderoso erguia-se do deserto, soprando em direção ao mar azul escuro."

1920 – Viagem para África do Norte e França

Países / Cidades Visitados: Argélia, Tunísia, Soussa, Sfaz, Saara, Tozeur, Nefta, Marselha

Em sua primeira viagem à África, em 1920, Jung foi fortemente impactado pelo contato com a cultura africana. Aos 46 anos, o psiquiatra suíço de tradição protestante buscava conhecer outras visões de mundo e ver o homem branco europeu “refletido num meio estrangeiro”. Jung observou as pessoas e sua relação com o tempo e com a divindade. “Essas pessoas vivem por seus afetos. […] O eu é desprovido de qualquer autonomia”, concluiu ele, que sentiu o efeito poderoso desse contato sobre as “camadas históricas em nós”. “No europeu, as coisas não se passam muito diferentemente; […] Em todo caso, dispomos de uma certa dose de vontade e de intenção refletida”, diz o autor em suas memórias.

Em sua segunda passagem por Túnis, sonhou que estava numa cidade árabe, onde havia um forte. Era localizada em vasta planície e murada em formato quadrado, contendo quatro portas. O forte era cercado por um fosso, sobre o qual havia uma ponte de madeira, que Jung decidiu transpor, para atingir uma porta aberta, sombria, em forma de ferradura. Quando ele estava sobre a ponte, no meio dela, viu sair pela porta um árabe de pele escura, elegante, em veste branca. Era um príncipe, e ele atacou Jung. Na luta, caíram no fosso e o árabe tentou afogar o europeu. Jung lhe disse: “Não, isso já é demais”, e enfiou a cabeça do príncipe na água, sem intenção de matá-lo, mas de incapacitá-lo para a luta. Admirava-o, mas não queria morrer.

O sonho mudou de cenário e, então, o jovem árabe estava com Jung já dentro do forte, num salão todo branco, simples e octogonal com teto em abóbada. No chão, um livro aberto, feito de pergaminho muito branco, escrito em letras negras que pareciam com a escrita do Turquistão. “Sentia que era o meu livro, que eu o havia escrito”, recorda Jung. Ele disse ao príncipe, que estava sentado à sua direita, que ele devia ler o livro, já que perdera a luta. Diante da recusa do jovem, Jung, então, abraça-o e obriga-o, de modo paternal e bondoso, a ler, pois sabia que seria indispensável.

Jung compreendeu que o jovem árabe simbolizava um mensageiro do Si-mesmo, vindo do forte que tinha o formato de uma mandala. Como o Anjo que tentou matar Jacó, ele queria Jung morto por não o conhecer. Era o árabe inconsciente (a parte primitiva da personalidade) em Jung em oposição ao eu consciente. Mas era preciso que conhecesse Jung, daí a obrigação de ler o livro. O sonho assinalava, ainda, a possibilidade de vida que foi oculta pela civilização. “Esse meio árabe, estranho,

totalmente diferente, desperta a lembrança original de uma pré-história, época longínqua […] que pensamos ter esquecido completamente”, pondera Jung em suas memórias.

Ao retornar para casa, Jung passou por Marselha, na França.

1923 – Viagem para Inglaterra

Cidades Visitadas: Sennen, Cornuália

A convite do amigo Peter Baynes, psicólogo e tradutor de suas obras para o inglês, Jung foi, em 1923, à Inglaterra, onde realizou um seminário sobre o processo de individuação. Aproveitou a ocasião para visitar os menires (monumentos de pedra do período neolítico) da Bretanha.

1924 – Viagem para Alemanha e Estados Unidos

Cidades Visitadas: Bremen, Nova York, Chicago, Novo México, Nova Orleans, Washington

Em 1924, Jung visitou os índios pueblos do estado do Novo México, nos Estados Unidos. No contato com o povo Taos, conheceu o chefe Ochwiay Biano que disse considerar os homens brancos loucos. “Eles dizem que pensam com suas cabeças”, disse o índio. “Mas naturalmente! Com o que pensa você?”, indagou Jung. “Nós pensamos aqui”, disse o homem, apontando o coração. Jung tinha, finalmente, a imagem que buscava do homem branco, a verdadeira. Então, concluiu que uma ave de rapina, como as que se veem em brasões, bem representava o conquistador branco com ambições civilizatórias, que aterrorizava povos pagãos.

Jung, ao investigar a relação daqueles índios com o sagrado, observou como o saber, o “racionalismo europeu”, afastava o homem do mundo mítico. O chefe índio, pelo contrário, se entendia representante de um povo do teto do mundo que fazia o mundo girar, pois, cada dia, sua religião ajudava o Pai a atravessar o céu. O Pai, para eles, era o Sol, fonte de toda vida. “Agimos assim não só por nós mesmos, mas pelo mundo inteiro”, explicou Biano. “Compreendi, então, sobre o que repousava a dignidade, a certeza serena do indivíduo isolado”, disse Jung. “Sua vida tinha sentido cosmológico.”

Voltando à cena urbana, ao retornar à Europa, Jung passa por Orleans e Washington, antes de fazer uma palestra em Nova York, no apartamento da amiga Kristine Mann.

1925 – Viagem para Inglaterra Cidades Visitadas: Londres, Dorset e Wembley

Em julho de 1925, ano em que retornou do Novo México, Jung completava 50 anos e visitou uma exposição sobre a África em Londres, na Inglaterra. No condado de Dorset, ministrou doze palestras sobre sonhos e simbolismo. Quando em Wembley, por ocasião da feira do império britânico, pensa em visitar o continente africano, empreitada que teve início em outubro do mesmo ano, partindo de Southampton, Inglaterra. 1925 – Viagem para Inglaterra, Portugal, Espanha, França, Itália, Egito, Quênia, Uganda e Sudão Cidades Visitadas: Southampton, Lisboa, Málaga, Marselha, Gênova, Porto Said, Mombaça, Kakamégas, Lago Vitória, Bunambale, Cartum A expedição à África Oriental, que começou em dezembro de 1925 e durou até abril de 1926, foi chamada de “Bugishu Psychological Expedition”, numa referência ao povo que habita a região do Monte Elgon, que Jung e seus companheiros, entre eles Peter Baynes, viriam a conhecer. No Quênia, Jung soube da morte de ingleses que tinham feito parte da viagem com ele até Mombaça, por doenças contraídas na região. Da janela do trem em que ia de Mombaça a Nairóbi, Jung avistou um caçador esguio, apoiado numa longa lança, ao lado de um grande cacto. Teve uma sensação de “déja vu” e sentiu que ambos compartilhavam o mesmo mundo por milênios. Quando se viu imerso no “silêncio do eterno começo”, visitando a reserva dos Athi Plains, o psiquiatra compreendeu o valor cósmico da consciência: “Eu, homem, num ato invisível de criação, levo o mundo ao seu cumprimento, conferindo-lhe existência objetiva. […] O homem é indispensável à perfeição da criação”. Em visita ao Monte Elgon, na fronteira com Uganda, Jung pôde perceber a capacidade dos quenianos de aprenderem por meio da imitação das pessoas e impressionou-se com seu conhecimento sobre a natureza emocional delas. Jung aceitou o pedido do governador de Uganda para que o grupo de três homens levasse uma mulher viajante e logo ponderou que o arquétipo da tríade se constelara e, como sempre, chamava o quarto elemento. Era o feminino compensatório do trio. Ao conhecer uma família nativa, o médico viu a clara separação de papéis entre homens (pastores de rebanhos) e mulheres (agricultoras e cuidadoras da prole). “Perguntava a mim mesmo se a masculinização da mulher europeia não se relaciona com a perda de sua totalidade natural […] e se a feminilização do homem branco não seria também outra consequência disso”, recorda Jung. Os africanos elgonyis veneram o Sol como Deus, mas somente no momento em que se ergue, e oferecem a ele sua alma viva. Também veneram o demônio, princípio de sombra, criador da angústia, que reina na noite, quando aquele povo deixar de ser otimista para temer fantasmas. “É a noite psíquica primitiva, os inúmeros milhões de anos durante os quais tudo foi sempre tal como continua a ser hoje. A nostalgia da luz é a nostalgia da consciência”, escreveu Jung quando já contava mais de 80 anos. Ele também recordou que, durante toda a viagem, sonhou com cenas de seu próprio país –numa tentativa de negar a África e também de defendê-lo dela– e somente uma vez sonhou com um negro, mas era um norte-americano, seu barbeiro. No sonho, ele tentava deixar os cabelos de Jung crespos como os dos negros com um ferro bem quente de frisar, até que o suíço sentisse a dor da queimadura. Seis meses após o início da aventura, ao navegar sobre o Nilo em direção a Cartum, capital do Sudão e localidade próxima ao Egito, Jung considerou o sonho uma advertência do inconsciente em relação ao perigo do primitivo sobre ele e concluiu que deveria conservar intacta sua identidade europeia. Mas ele também tinha percebido que a atmosfera de casa tornara-se quase irrespirável para ele e que esse tinha sido o real motivo da viagem à África. “A viagem do interior da África para o Egito tornou-se, para mim, como que o drama do nascimento da luz, estreitamente ligado a mim mesmo e à minha psicologia.”

1926 / 1927 – Viagem para os Estados Unidos

Em 1926 e 1927, Jung fez duas viagens aos Estados Unidos e, em 1929, retornou a Ravena, na Itália, onde viveu uma experiência incomum.

1929 e 1932 – Viagem para Itália

Cidade Visitada: Ravena

Em suas memórias, descreveu como, em companhia de Toni Wolff, visitou novamente Ravena*, viu que, no monumento funerário de Galla Placidia, o qual o encantara muitos anos antes, havia, no lugar das janelas, quatro belos mosaicos, que retratavam cenas bíblicas: o batismo no rio Jordão, a travessia do Mar Vermelho, o milagre da cura de um leproso e Cristo oferecendo a mão a Pedro, que quase se afogava nas ondas. Mais tarde, Jung descobriu que os mosaicos não existiam. Sobre a experiência, na qual conteúdos interiores tiveram aparência de fatos exteriores, Jung afirmou: “Impossível explicá-la”. Mas ele sabia que, ao confrontar sua anima, havia corrido os perigos que viu expressos nos mosaicos.

* O número total de viagens de Carl Jung a Ravena, bem como suas datas de ocorrência, é incerto, pois os relatos, tanto do próprio Jung como de biógrafos, podem divergir.

1933 – Viagem para Alemanha, Grécia, Turquia, Palestina e Egito

Cidades Visitadas: Berlim, Ilhas Gregas, Atenas, Dardanelos, Alexandria

No ano seguinte, Jung acabou retornando para a África. Ele foi de trem da Alemanha para a Itália e, de lá, de navio para Atenas, na Grécia. Dali foi para a Turquia e a Palestina e, no retorno, visitou finalmente o Egito, em particular a cidade de Alexandria. Essa viagem foi decidida repentinamente, a partir do convite realizado pelo amigo Hans E. Fierz, especialista em química das cores, que dispunha de lugares sobrando em sua cabine. De acordo com a biógrafa Deirdre Bair, embora Jung tivesse dito que não iria, na manhã seguinte ele estava na estação de trem de onde partiriam para o porto, vestindo terno branco e chapéu de safári. Conta a autora que, dentre os lugares visitados, a Palestina foi o que mais impressionou Jung, que se perguntava como seu amigo judeu-alemão, James Kirsch, praticaria psicologia numa cultura tão diferente à dos “alemães assimilados”. Kirsch teria agora de se adaptar a uma pátria onde seria discriminado pelos árabes nativos.

1936 – Viagem para os Estados Unidos

Cidades Visitadas: Boston, Nova York, Providence, Milton, Harpswell

Em 1936 e 1937, Jung realizou suas últimas viagens aos Estados Unidos. Em agosto de 1936, visitou Boston (Harvard University) e Nova York, onde realizou conferências. Em Providence, no estado de Rhode Island, Jung ministra palestra a convite do bispo anglicano James Wolf Perry. Também na Ilha de Bailey, localizada na cidade de Harpswell, no estado do Maine, proferiu conferências.

1937 – Viagem para Inglaterra e Estados Unidos

Cidades Visitadas: Londres, Nova York

Em outubro do ano seguinte, após uma viagem a Londres com a esposa, eles se deslocaram para os Estados Unidos para que Jung desse início ao seminário sobre sonhos e símbolos em Nova York. Na ocasião, voltou a abordar os sonhos de seu amigo, Nobel de Física, Wolfgang Pauli, tema que iniciara no ano anterior, em Bailey.

Datam de 1937, ainda, as famosas “Conferências Terry”, realizadas na Yale University, em New Haven, Connecticut. Jung levou para o evento questões da psicologia da religião. De lá, dirigiu-se à cidade de Bridgeport, onde proferiu palestra na United Church, com base no simbolismo cristão.

De volta à ilha Bailey, Jung retomou o seminário sobre sonhos e símbolos iniciado dias antes.

1937 – Viagem para França, Índia e Sri Lanka

Cidades Visitadas: Marselha, Mumbai, Délli, Ellora, Ajanta, Sânchi, Agra, Allahabad, Benares, Calcutá, Konarak, Madras, Mysore, Trivandrum, Madura, Colombo, Kandy

“As Índias deixaram vestígios em mim que vão de um infinito a outro infinito”, disse Jung recordando sua viagem à Índia, ocorrida entre dezembro de 1937 a fevereiro de 1938, a convite do governo britânico, por ocasião do 25º aniversário da Universidade de Calcutá.

Durante sua estada no país, além de receber três diplomas de doutor “honoris causa”, dedicou-se ao problema da natureza psicológica do mal. Ele se espantava como fato de a espiritualidade indiana abranger tanto o bem quanto o mal, e de o indiano procurar sentir-se fora do bem e do mal (diferente do cristão que “aspira ao bem e sucumbe ao mal”, como se lê em “Memórias, Sonhos, Reflexões”). “Eu, pelo contrário, não quero desembaraçar-me nem dos homens, nem de mim mesmo, nem da natureza […]. Não poderia desembaraçar-me de algo que não possuo, que não fiz, nem vivi […] O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera”, refletiu.
Em Déli, Jung procurou observar as influências islâmicas e, em Sarnath, visitou o local em que Sidarta Gautama, o Buda, teria feito seu primeiro sermão. Na estupa de Sânchi, sentiu-se emocionado, sem saber dar nome ao que permanecia inconsciente. “Compreendi a vida do Buda como a realidade do si-mesmo que penetrara uma vida pessoal e a reivindicara”, relatou Jung. Quando próximo ao Himalaia, ele aproveitou para conversar sobre mandalas com um Lama.

No retorno ao hotel em Calcutá, após dez dias de internação em razão de uma disenteria, o psiquiatra suíço teve um sonho bem europeu. Sonhou que estava em uma ilha desconhecida, pequena e quase desabitada, próxima à Inglaterra, em companhia de amigos de Zurique. Ele, com outros turistas, estavam no pátio de um castelo medieval, diante de uma torre que continha uma escada que chegava a uma sala de colunas fracamente iluminada por velas.
“Ouvi dizer que era o castelo do Graal e que à noite haveria uma celebração do Graal”, contou o sonhador. Parecia ser uma informação secreta, pois o professor alemão, cuja erudição impressionava Jung, não estava sabendo de nada. O homem “falava sem cessar de um passado morto”, sem consciência do sentido da lenda e do ambiente real. Embora Jung tentasse chamar sua atenção, ele não via a escada, nem as luzes da festa.

Ainda no sonho, então, Jung viu-se num espaço do castelo cuja parte inferior era coberta por uma grade de ferro negro trabalhado em forma de vinha, com pequenos nichos de dois em dois metros. Um homem encapuzado de ferro passava de um nicho a outro, e Jung tentou chamar a atenção do alemão para o fato.

Mudou a cena e Jung estava agora com os turistas, sem o professor alemão, fora do castelo, num lugar rochoso. Jung teve a ideia de buscar, com o grupo, o Graal que estava escondido numa casinha desabitada no norte da ilha. Chegaram a uma parte estreita da ilha e viram que ela se dividia em duas metades por um braço de mar. Era noite e, cansados, deitaram no chão e adormeceram, um a um, sob frio intenso. Jung decidiu, então, atravessar o canal a nado, pois não havia nenhuma ponte, nenhum barco que o levasse ao Graal. Quando ia despir-se, acordou.
Jung ponderou: “Era como se o sonho me perguntasse: ‘O que fazes nas Índias?’ É melhor que procures para teus semelhantes o cálice da salvação, o ‘salvator mundi’ de que tens tanta necessidade. Não estás a ponto de demolir tudo o que os séculos construíram?’.”.

Em Kândi, a velha cidade real do antigo Sri Lanka, Jung conversou com os monges, leu textos budistas, impressionou-se com a naturalidade com que cenas de sexo eram retratadas nas paredes do templo e assistiu a uma cerimônia de jovens que foi precedida de um concerto de tambor sobre o qual observou: “O tambor fala numa língua original ao ventre ou ao plexo solar.

[…] Não se trata da veneração de um buda não existente, mas de um dos inúmeros atos de redenção de si mesmo do homem desperto”.

Ainda não estando com a saúde plenamente restabelecida, Jung retorna à Europa após quase três meses de viagem. Na opinião de Barbara Hannah, biógrafa e amiga de Jung, ele nunca veio a se recuperar de fato. Esse fato, somado à eclosão da Segunda Guerra Mundial, no ano seguinte do retorno de Jung à Suíça, parecem ter posto fim à sua disposição para viajar pelo mundo.

Fontes utilizadas nesta pesquisa:

BAIR, Deirdre. “Jung: uma biografia”. Tradução de Helena Londres. São Paulo: Globo, 2006. (vol. 2).

HANNAH, Barbarah. “Jung, His Life and Work: a biographical memoir”. Achville: Chiron Publications, 1976.

JUNG, Carl G. “Memórias, Sonhos, Reflexões”. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

SILVEIRA, Nise. “Jung: vida e obra”. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.